sexta-feira, 18 de março de 2011

Discurso a O

“Você está aqui a serviço de seus senhores. Durante o dia, fará o trabalho que lhe confiarem para a manutenção da casa... Mas deve abandonar imediatamente o que estiver fazendo, à primeira palavra ou ao primeiro sinal de quem lhe ordenar, pelo seu único serviço verdadeiro, que é o de entregar-se. Suas mãos não são suas, nem seus seios, nem particularmente nenhum dos orifícios de seu corpo, que podemos esquadrinhar e nos quais podemos penetrar à vontade... Isso significará, aos seus próprios olhos e aos nossos, que a sua boca, o seu ventre e os seus quadris estão abertos para nós. Diante de nós, nunca tocará seus seios: eles são alteados pelo espartilho para nos pertencerem. Durante o dia, portanto, deverá ficar vestida, mas levantará a saia sempre que alguém lhe ordenar, e quem quiser poderá utilizá-la com o rosto descoberto e como quiser, com restrição entretanto do chicote. Este só lhe será aplicado entre o poente e o nascer do sol. Mas além da aplicação que será feita por quem desejar, poderá ser também punida com o chicote à noite, por ter faltado a alguma regra durante o dia: seja por não ter tido suficiente complacência, ou por ter levantado os olhos para quem vier falar-lhe ou possuí-la: nunca deve olhar-nos no rosto. Neste traje que usamos a noite, e que estou usando agora, se deixamos o sexo descoberto, não é pela comodidade que também se poderia obter de outro modo, é pela insolência, para que seus olhos se fixem nele e não se fixem em mais nada; é para que aprenda que este é o seu senhor, a quem seus lábios foram destinados em primeiro lugar. Durante o dia, quando estamos vestidos normalmente e você como agora, deverá observar as mesmas regras, e se for requisitada, terá apenas o trabalho de abrir suas roupas, que fechará quando tivermos acabado. Em compensação, à noite, só terá seus lábios e a abertura de suas coxas para nos homenagear, pois suas mãos serão amarradas às costas e estará nua como foi-nos trazida há pouco; só terá seus olhos vendados quando quisermos maltratá-la, e agora que já viu como a chicoteamos, quando for chicoteada. A este respeito, como é conveniente que se acostume a receber o chicote, será chicoteada todos os dias enquanto estiver aqui, não tanto pelo nosso prazer, como para sua instrução. Isto é tão verdadeiro, que nas noites em que ninguém a quiser, pode esperar que o criado encarregado desta função venha, na solidão da sua cela, aplicar-lhe o que deve receber e que não estejamos com vontade de aplicar. Com efeito, por este meio, assim como pela corrente que será fixada ao anel do seu colar e que deverá prendê-la na cama mais ou menos estreitamente durante várias horas por dia, trata-se muito menos de fazê-la sentir dor, gritar ou derramar lágrimas, do que fazê-la sentir, por meio desta dor, que está sob coação, de mostrar-lhe que se encontra inteiramente devotada a algo fora de você. Quando sair daqui, usará um anel de ferro no anular, que fará com que seja reconhecida. Nessa ocasião já terá aprendido a obedecer àqueles que estarão usando este mesmo sinal - ao vê-lo, saberão que você está constantemente nua sob a saia, por mais correta e banal que seja sua roupa e que é para eles que está assim. Os que a acharem indócil, deverão trazê-la aqui, onde será conduzida à sua cela.”
Pauline Reàge

“Se eu, de uma vez por todas, deixei de ser eu, se minha boca, meu ventre e meus seios não me pertencem mais, torno-me criatura de um outro mundo, onde tudo mudou de sentido. Talvez, um dia, eu mesma não saiba mais nada de mim. Que me importará então o prazer, que me importarão as carícias de tantos homens, seus enviados, que não diferencio - que não posso comparar com você?”

É assim que ela fala. Quanto a mim, escuto-a e percebo que não mente. Pode ser, afinal, que a túnica ardente das mitologias não seja simples alegoria, nem a prostituição sagrada, curiosidade da história. Pode ser que as correntes das canções ingênuas e os “amo-o até a morte” não sejam simples metáfora, nem o que dizem as prostitutas a seus amados: “Você está na minha pele, faça de mim o que quiser”. Pode ser que Heloísa, quando escrevia a Abelardo: “ Serei sua alegria*”, não quisesse apenas fazer uma frase bonita. Sem dúvida a História de O é a carta de amor mais cruel que um homem tenha jamais recebido.

*OBS: alegria [no original: “fille de joie”]
pode ser interpretado tanto como prostituta,
quanto como aquela que dá alegria.

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